Há séculos, há muito tempo, os régulos de Timor, duma ponta a outra, juntaram-se no extremo da ilha para uma grande cerimónia sagrada.
No calor da dança, as gaitas de bambu e as tubas de chifre
anunciaram a todos que no meio do mar, na extremidade da ilha, aparecera
qualquer coisa parecida com uma armada; o que pusera a todos o coração em
sobressalto.
Aqui, o régulo-chefe da extremidade da ilha cuidou e
persuadiu-se de que aquela armada viria até ali para fazer guerra.
Mandou então dizer a todos os régulos que viessem sem falta,
com seus guerreiros, suas espadas, armas, arcos e zagaias, para irem à praia
esperar todos aqueles barcos.
Os nautas, vendo na praia a grande multidão de gente,
compacta como as folhas duma árvore, fundearam os barcos ao largo, e apenas um
se aproximou da praia.
E logo um mensageiro correu, pressuroso, a avisar o régulo
sagrado.
Este, ouvindo isto, enfeitou-se muito bem, empenachou-se,
tingiu a teste com bétele encarnado, pegou na sua espada e, com todos os
régulos e guerreiros, dirigiu-se para a praia, em direcção ao lugar onde o
barco estava ancorado.
De terra, um intérprete, em nome do régulo, perguntou aos do
barco:
- Vós vindes com as vossas armas, com que intento?
Todos se calaram dentro do barco; apenas o que vestia a
batina preta respondeu:
- Nós vimos da outra banda do mar, de outras praias, dum
grande reino, duma grande terra, por ordem de Deus, para vos ensinar, para vos
anunciar os seus mandamentos.
Tendo o intérprete dado esta resposta ao régulo, este mandou
dizer de novo:
- Sendo assim, escusais de desembarcar, porque se tentardes
descer, matar-vos-emos a todos e beberemos o vosso sangue até à última gota.
Do interior do barco, responderam:
- Visto que não podemos desembarcar, permiti que a nossa
gente, ao menos, desça a buscar água para os barcos, porque esta esgotou-se já.
O intérprete traduziu este pedido ao régulo; este mandou
responder:
- Para isto apenas, podeis descer, mas não podem fazer mais
nada.
Então desceram um pequeno barco, e aquela pessoa vestida de
batina preta desembarcou com a sua gente para buscar água.
Chegados a terra, o religioso de batina preta dirigiu-se
logo ao régulo. Este. Olhando para tão misteriosa figura, não pôde fixá-lo e
caiu de joelhos para lhe beijar a mão, mas o frade retirou-a dizendo:
- Não me toques porque tu não és dos meus.
Nesta altura, o régulo, tomado de espanto, voltou a
perguntar:
- Acaso o título de nossos soberanos, senhor sagrado, vos
pertence?
Aquele respondeu:
- É exactamente assim como dizeis.
Foram estas palavras do régulo que deram origem à designação
na’i-lulik (senhor sagrado, sacerdote, padre), usada até aos nossos dias.
Vendo o régulo que este homem não vinha para fazer guerra,
ele e os régulos e todos os guerreiros voltaram para casa, mandando tocar os
instrumentos e rufar os tambores, para avisar o povo de que não deviam fazer
caso de tal gente.
Tendo voltado todos a casa, aquele estranho homem vestido de
batina, vendo que todos se retiravam e o local ficava deserto, ordenou aos
marinheiros que fossem buscar água e enterrassem bem a âncora do barco na
fonte, esticando quanto pudessem a corrente da mesma.
Feito isto, subiram todos de novo para o barco.
Em breve um rapazito veio buscar água.
Este viu, com espanto, a âncora enterrada no poço, a
corrente de ferro presa ao barco, e correu, a toda a pressa, a dar conhecimento
ao chefe.
Ouvindo tal, o chefe irou-se, ameaçador, e veio com todos os
seus guerreiros até à fonte ver semelhante coisa.
Chegado ali, mandou tirar a âncora da fonte.
Toda esta gente correu a arrancar a âncora; puxaram, mas não
veio, prepararam-se para cortar a corrente, tentaram-no, mas em vão. Cansados,
o chefe ordenou então ao intérprete que gritasse para o barco e perguntasse ao
capitão:
- Porque razão vieram eles mergulhar a âncora na fonte e dar
trabalho a ele e à sua gente? Que pretendem eles mostrar com isto?
No barco, todos se calaram; apenas o senhor vestido de
batina preta respondeu:
- Nós fizemos isto para rebocar a vossa terra para Portugal,
porque não quereis receber os mandamentos de Deus, a sua Revelação, trazida por
nós de longes terras, para vos comunicar, para vos distribuir.
Ouvindo isto, mulheres, homens, todos à uma, mofaram da
gente do barco, gritando-lhe:
- Como podeis vós rebocar a nossa terra para Portugal?
Então o chefe sagrado aproximou-se mais da praia e ele
próprio gritou ao senhor vestido de batina:
- Aqui estou eu a desafiar-te. Sempre quero ver como é que
vocês vão rebocar a nossa terra para Portugal.
Do barco, o homem vestido de batina preta ouviu as palavras
do chefe e respondeu:
- Se vós quereis saber, esperai e vereis.
Ditas estas palavras, subiu à ponte da proa, de modo que
todos vissem bem a sua atitude inspirada; depois ajoelhou, pôs as mãos, ergueu
os olhos para o céu durante algum tempo, baixou-os novamente, levantou-se e
ordenou aos marinheiros que largassem.
O barco começou a deslizar; de repente, todos sentiram como
que um terramoto, um cataclismo que fazia a terra deslizar também.
O chefe e a sua gente, vendo que a terra se afastava,
rebocada, caíram todos aterrados e gritavam para os do barco que parassem,
porque eles não queriam ir para Portugal.
Ouvindo estes gritos, a pessoa vestida de batina preta
voltou a dizer:
- Nós podemos parar, mas [para isso] deveis dar-nos
autorização para desembarcar, a fim de vos comunicar, de vos ensinar os
mandamentos, a luz de Deus, que está no Céu, que está nas alturas. De outra
maneira, levaremos a vossa terra para Portugal.
Aqui, o chefe, o povo e os régulos todos, numa só voz,
aceitaram todos as palavras deste senhor e pediram-lhe, e à sua gente, para que
desembarcassem e lhes ensinassem a doutrina santa de Deus.
Não tardou muito que o chefe, o povo e muita outra gente
aceitassem os mandamentos, a luz de Deus, e se convertessem.
Deste povo, o cristianismo espalhou-se por toda a parte de
Timor, até aos nossos dias.
SÁ, Artur Basílio de - «Textos em teto da literatura
oral timorense». Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1961.
Sem comentários:
Enviar um comentário